terça-feira, 12 de setembro de 2006

Encantos, sujeitos, justiças e virtudes

Estive eu, na noite passada, num daqueles momentos de insônia breve, entre o acordar com calor e o voltar a dormir depois de abrir a janela, pensando sobre encantos.
Caí na obviedade de perceber que encanto e feitiço são filhos-vocábulos do mesmo pai-radical.

Talvez tenha sido essa óbvia percepção que me tenha mostrado: estou enfeitiçada. Ou, para não adentrar no terreno do esoterismo, estou encantada. Eu e todos os que me rodeiam, pelo mesmo ser encantador (ou enfeitiçante, ou feiticeiro: não há como lhe resistir...).

Ainda que eu guarde alguma página rasgada, algum cantinho de papel de pão impregnado em mágoa e mentira, estou sob o efeito do feitiço de descobrir que ser feliz é bom, e não é privilégio dos perfeitos (ou dos que assim se consideram, já que o “bem” e o “bom” são conceitos cada vez mais subjetivos, entendimento meu reforçado pelas inúmeras vezes que ouvi “o que é bom pra ti não é o que é bom pra mim...”).
Estou me permitindo ser imperfeitamente feliz, nas simplicidades e sem rebuscamentos.

A minha bondade não está mais em xeque (ou em cheque, como andou estando, por uns tempos aí...). Sou beneficiada pela presunção de bondade, de boas intenções, de bom caráter.

Para minha própria hilariedade, descobri que sou, agora, muito boa naquilo em que mais era alvo de rechaça. Não preciso ser perfeita para fazer alguém feliz. Não preciso nada além de me entregar e me deixar receber, reciprocamente aceitar o que me é entregue, sem muita poesia, sem considerações abstratas, sem conto de fadas.

Essa simplicidade maravilhosa já foi por mim exaltada, logo aí abaixo. Não quero me tornar repetitiva, mas o tema me encanta, da mesma maneira que me encanta quem o inspira.

Não sei nada sobre a virtude. Não sei ser virtuosa, nem pretendo aprender. A virtude me parece muito mais a fantasia de carnaval de alguns, ou a expressão de alívio do pecador ao sair do confessionário, ou mesmo o recalque dos beatos, que condenam tudo o que não se permitem ter.

Virtude, enquanto mérito, muito mais é não haver ferido propositalmente ninguém. Virtude, enquanto objetivo, muito mais é ter presente o desejo e as ações concretas para promover o bem de alguém, sem com isso pensar em promover o próprio bem.

Não acredito que a exaltação, a ostentação e a armadura façam parte dos conceitos daí de cima. Entretanto, posso dizer de mim mesma para servir de consolo à alma que tenho, e que foi pisoteada sem dó, que minha atual virtude reside em ter, nas mãos, todas as armas para reduzir a pó meu algoz, mas não ter o desejo de fazê-lo.

A máfia ensina que, para ferir realmente alguém, não basta ferir ao sujeito em si. É preciso tirar dele aquilo que ama acima de tudo. Poderia eu, secretária de algumas discrições, levar às mãos competentes um lindo dossiê, três pequenas folhas de papel, de publicidade garantida em lei, que aniquilariam quem me aniquilou temporariamente.
Ai, que malvada!!! Não! Eu sou é boazinha! E estou feliz demais para arquitetar vinganças... Arquétipos consideráveis, mas para outro momento.

Talvez fosse, essa, uma prosaica forma de justiça. Entretanto, me cabem duas considerações:

1- Não sou clichê a ponto de justificar meu sofrimento impondo mais sofrimento a que mo causou;
2- Justiça, por mais sedutor que o conceito possa ser, é um ente estranho ao nosso mundo, onde meigos coelhinhos que nada de mal fizeram servem de petisco a leões famintos, que, igualmente, nada de mal fizeram (todos precisam comer; segurança alimentar é garantia individual tutelada).

Se justiceira tentasse eu ser, lograria algum contentamento, mas não estou interessada em contentamentos... Prefiro os olhos doces de quem me arranca sorrisos, os suspiros não ensaiados... Traços de alegria perene.


E, pra não dizer que não falei em verso, cito um trecho de Raimundo Corrêa, poeta parnasiano, não tão chique, nem tão pomposo, cuja fórmula “apanhou” dos bons modernistas, mas que dá o recado direitinho:

“Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo
Como invisível chaga cancerosa.

Quanta gente que ri, talvez exista
Cuja ventura única consista
Em parecer, aos outros, venturosa!”

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