terça-feira, 26 de agosto de 2008

Em homenagem a uma boa mulher.


Todos os dias eu saio pra caminhar - ainda que a caminhada se resuma a ir até a padaria da esquina, comprar pão, guloseimas e engordativos.
Sempre sigo o mesmo trajeto: atravesso a rua, atravesso o canteiro central da praça, atravesso novamente a rua. Na sinaleira, esperando que os carros parem, sempre encontrava a moça do Correio do Povo, vendendo jornal aos passantes, desde cedinho da manhã. Nunca soube seu nome. Um dia, ela, ao me entregar o jornal de sábado, perguntou-me o que eu fazia - pois via-me nas primeiras horas da manhã, todos os dias, ou indo caminhar, ou indo à padaria, ou ambos... Ela queria saber se eu era dona de casa. Respondi que não, que sou professora universitária e que estou estudando, fazendo doutorado. Ela não sabia o que era doutorado. Levou um bom susto quando contei-lhe que a faculdade não era o ponto máximo da instrução formal. Desde então, ela cumprimentava-me: "-Bom dia, professora!". Eu respondia: "-Bom dia, amiga!". Fiquei sem jeito de perguntar-lhe o nome. Possivelmente, ela também, de perguntar-me o meu.

Contou-me que tinha um filho, com sete anos. "-Menino inteligente, professora, precisa só ver! Já lê o jornal melhor que eu!"

Contou-me que havia rompido o relacionamento com o pai de seu filho. "-Não dava mais, professora, ele bebia muito e batia na gente... Se eu levasse dinheiro pra casa, ele comprava tudo em cachaça. Botei pra correr, professora! Mas... Sabe como é... O menino sente falta do pai, fica perguntando... Eu fico meio sem coragem de dizer que o pai não presta, acho errado fazer uma imagem feia do pai pro filho, apesar de que é verdade, mas fazer o quê?... Até eu sinto falta dele de vez em quando... Quando ele não bebia, era uma rica criatura. Mas não adianta, com gente que vicia na bebida não dá."

Há uma semana, perguntou-me: "Será que era uma boa idéia comprar um computador pro meu guri, professora? Será que ele aprende usar? Será que ajuda nos estudos?". Respondi que sim, seria muito bom para o menino aprender a usar o computador. Ela confessou estar juntando um dinheirinho, queria comprar em prestação. Disse, orgulhosa: "Eu posso fazer carnê em qualquer lugar, professora, tenho o meu nome limpo, nunca sujei".

Há dois dias não a vi mais na sinaleira, vendendo jornais. Estranhei. Perguntei ao taxista, que fica no ponto da mesma esquina, se ela havia ido para outra sinaleira, outra esquina, outro emprego (...). O taxista me entregou, silencioso, o Diário Gaúcho. Na penúltima página, na coluna policial, havia uma pequena notinha dando conta de que Fulana de Tal, 27 anos, havia sido morta a facadas por seu ex-companheiro, Fulano de Tal, 42 anos, na casa em que vivia com o filho, na Vila Bom Jesus, e que o corpo havia sido achado dois dias depois, pela mãe da moça. O filho, de sete anos, estava escondido dentro da pia da cozinha. Não comia há dois dias. Havia visto o pai esfaquear a mãe. A notinha era acompanhada por uma foto 3x4, provavelmente obtida da carteira de identidade da vítima. Era a minha amiga jornaleira. Ainda não sei seu nome, não consegui gravar.

A narrativa por si bastaria, creio, para fazer pensar. Não sobre violência doméstica, ou dificuldades de relacionamento, ou tragédias... Mas que a vida de ninguém deveria terminar assim, de forma tão bruta, fria, despropositada. Ou, mais inquietante, serve para pensar que a vida de ninguém deveria começar assim... Pobre menino.

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